Tudo começou quando, vinte anos atrás, fomos morar na encosta de um vulcão. Um vulcão dormente, que não apresentava riscos; sua última erupção importante acontecera no século XVII. O andar mais alto da casa era uma sala retangular, clara e arejada. Do lado direito de quem entrava, havia vista desimpedida sobre um dos picos do vulcão. Embora o topo da montanha estivesse a quilômetros de distância, a impressão era de que ao abrir uma das janelas e estender a mão seria possível tocar a sua vegetação rasteira e árida, de tonalidade palidamente esverdeada.

O bairro onde morávamos ficava a mais de três mil metros de altitude. Havia uma sensação de espaço e de liberdade na sala extensa, com vista direta sobre a montanha, as nuvens e, no mesmo nível das nossas janelas, o terraço dos vizinhos.

Pouco depois de termos nos instalado, recebemos das autoridades um presente desagradável, que não era exclusivo para nós. Era mesmo para a cidade inteira: a notícia de que o vulcão, adormecido por mais de trezentos anos, voltara a entrar em atividade e que uma nova erupção de grande escala era esperada a qualquer momento. 

Passou a ser rotina ver o prefeito, no noticiário noturno, dando conselhos à população, recomendando a compra de máscaras, mandando proteger com papelão as vidraças das janelas. Por um lado, ele procurava tranquilizar, dizendo que a cidade receberia cinzas, não lava, pois esta, se caísse, escorreria pela outra vertente da montanha. Por outro, seu tom excitado transmitia alarme. Alguns maldosos especulavam se o prefeito não via na situação a chance de se candidatar à presidência. Em todo caso, qualquer pessoa mais informada sabia que os habitantes de Pompeia morreram sobretudo por inalar os gases da explosão vulcânica. Máscaras se tornaram o produto mais cobiçado.

A cidade era Quito, e o pico recém despertado do vulcão era o Guagua Pichincha. “Guagua”, que em quéchua significa bebê, tornou-se um conceito importante na nossa vida. Por todo lado, só se dizia “el Guagua está tranquilo hoy” ou “qué bonito se ve el Guagua”. Volta e meia, a montanha agora cuspia cinzas, que cobriam o telhado e o jardim da nossa casa e das casas vizinhas e toda a cidade. Passou a entrar em uso o verbo “cenizar”. A cinza tinha de ser retirada o mais rapidamente possível porque, quando chovia, tornava-se viscosa e pesada como cimento úmido. 

O grande espetáculo aconteceria um ano depois, quando houve erupções violentas, que criavam em cima da cratera do Guagua uma coluna acinzentada de vários quilômetros de altura, coroada por um parasol. O conjunto tinha o formato de um gigantesco cogumelo. Era uma visão belíssima, uma pura manifestação da natureza. Despertava espanto e admiração. Temor também, porque sabíamos que todo aquele esplendor terminaria caindo sobre nossas cabeças. 

As emissões de cinza continuaram, esporadicamente, até nossa partida, em julho de 2001. A cidade ficava paralisada, o aeroporto fechava, havia instrução de não sair de casa quando o vulcão ia entrar em atividade. Em uma dessas ocasiões, precisei mesmo assim ir ao trabalho, por uma questão urgente. Na volta para casa, fui pego pela erupção. Eu dirigia, com visibilidade mínima, pela cidade deserta, com as entranhas do vulcão chovendo sobre o carro. Era como uma tempestade de neve, lenta e silenciosa, só que cor de cinza.

El Guagua
“El Guagua”, gravura da artista plástica equatoriana Dayuma Guayasamín, 1998

Na época, tomamos tudo como uma aventura única em nossas vidas, algo que não se repetiria e pela qual valia a pena passar uma vez, embora sempre houvesse incerteza sobre se realmente sobreviveríamos a ela. Vinte anos depois, máscaras e isolamento social recorrente voltaram a ser parte do nosso cotidiano.      

Em um sábado andino, anterior ao despertar do vulcão, subi para ler no sofá diante das janelas que olhavam para a estupenda vista. Era começo da tarde. No terraço ao lado, um pequeno grupo terminava de almoçar. Abri a janela e cumprimentei. Houve apresentações. Mary Lou e John Hay, o casal de vizinhos, recebiam dois ou três convidados.  No dia seguinte, foi entregue em casa, para minha mulher, um buquê de rosas equatorianas, talvez as mais bonitas e duradouras do mundo.

Ela era comunicativa, ele reservado. Ela era equatoriana de origem cem por cento indígena, ele vinha de uma família de Nova York e de Connecticut. Ela era empresária bem-sucedida, proprietária de estações de rádio, ele vivia de um trust fund que herdara da família. Os dois se complementavam. Eram, ambos, extremamente populares nos meios intelectuais, jornalísticos e artísticos da cidade.

Frequentemente, aos sábados, jantávamos na ampla cozinha da sua casa, com mais dois ou três de seus amigos. Nesses pequenos jantares conhecemos algumas das pessoas mais interessantes e influentes do Equador. Quem cozinhava e servia era a própria Señora de Hay. Os vários empregados da casa, sem muito o que fazer, liam o jornal ou assistiam à novela, sentados na outra ponta da cozinha. 

Quando a Embaixada em Quito mudou de chefia, apresentamos a nova embaixadora, Vera Pedrosa, ao casal Hay. Surgiu entre eles uma afinidade instantânea e uma amizade que viria a ser duradoura, como era natural, tratando-se de pessoas que, todas três, possuíam forte poder de sedução e compartilhavam tantos interesses. 

Mary Lou e John criavam a neta, que tinha a idade da nossa filha. Com eles moravam também vários cachorros da raça Lhasa apso, nem todos muito simpáticos.   

Logo no saguão da casa dos Hay, na parede da direita, via-se uma tela de grandes dimensões, de um pintor que se tornaria nosso amigo, Ramiro Jácome, e que viria a morrer em 2001, ainda relativamente jovem. O quadro representava uma das cenas célebres da história do Equador, o assassinato de Eloy Alfaro. Presidente duas vezes, de 1895 a 1901 e de 1907 a 1911, Alfaro, liberal, introduziu no país conceitos insólitos como o casamento e o registro civis, o ensino público gratuito, e a separação entre Estado e Igreja. Exilou-se no Panamá com a família após deixar o governo pela segunda vez. 

Voltando ao Equador em janeiro de 1912, durante uma guerra civil entre duas facções liberais, Alfaro, então com 69 anos mas, nas fotos, parecendo bem mais velho, alquebrado, foi preso e levado de trem de Guayaquil a Quito — ironicamente, ele promovera a construção da estrada de ferro. Foram presos com ele um irmão, um sobrinho, e mais três apoiadores. 

Assim que chegaram à penitenciária na capital, esta foi invadida, com a cumplicidade dos guardas, por uma multidão — quatro ou cinco mil pessoas — aos gritos de Viva la religión! Ao longo dos dias anteriores, os jornais do país haviam criado um clima de ódio contra Alfaro e seus correligionários, literalmente incentivando seu assassinato.   

Os prisioneiros foram linchados e defenestrados e, nus, arrastados pelas ruas de Quito, alguns talvez ainda vivos. Houve também castração e desmembramento, exposição de vísceras e degustação do sangue das vítimas, uma das quais, um jornalista, ainda em vida teve a língua decepada e exibida à multidão, durante o cortejo até o parque de El Ejido, onde os corpos foram queimados.

Esse drama sempre me faz pensar, pela barbárie, em um momento da revolução francesa, os massacres de setembro 1792 nas prisões parisienses. Meus livros sobre o Equador estão em Singapura, mas vejo na Internet que alguns dos assassinos — sapateiros, açougueiros, empregados de famílias respeitadas — podiam ser identificados pelo nome. Sabe-se, por exemplo, que um deles era “el cochero de la señora Isabel Palacios”. Pesquisando esse nome, vejo que ela pertencia “a una de las más ricas famílias de Quito” e que “siempre fue una verdadera madre de los Salesianos”.

Ramiro Jácome

O quadro de Ramiro Jácome se intitula “El arrastre del Alfaro”; é uma tela expressionista e violenta. Mostra o momento em que o terrível cortejo passa pela Praça da Independência, com a catedral ao fundo. À direita está o palácio do arcebispo de Quito. Deve ser ele próprio, Federico González Suárez, que aparece na janela. Há debate entre os historiadores sobre se alguém orquestrou os assassinatos. Parece provável que tenha havido ao menos indiferença das autoridades civis e eclesiásticas.

O linchamento de Eloy Alfaro foi certamente um alívio para o governo da época, para a outra ala liberal — conduzida por Leonidas Plaza, que também foi presidente duas vezes — e para os conservadores. Se eu não tivesse admirado a força da tela tantas vezes na casa de John e Mary Lou, esse crime político seria para mim apenas uma abstração. A arte, porém, tem o poder de dar concretude à História e seus atores, como souberam todos os governantes que, ao longo dos séculos, protegeram escritores, pintores e músicos. Lembro de conversar com Ramiro Jácome sobre seu quadro, os dois parados frente à tela na casa dos Hay. 

Nossa rua era uma ladeira, que descia, como se diz em castelhano, pelas saias do morro, pelas “faldas del Pichincha”. A casa ficava em uma esquina, e a junção das duas ruas criava o endereço Los Comicios y Los Cabildos, significando “eleições” o primeiro termo, e algo como “câmara de vereadores” o segundo. Em frente à casa, havia uma praça coberta de eucaliptos, como um pequeno parque, onde duas vezes por dia eu passeava nossa Golden retriever, Missy, sobre a qual pude falar em Kiki em Kuala Lumpur. Não era incomum ver pastando por ali duas ou três vacas.  

Um dia, ouço um barulho de rodas de metal. Vou à varanda do quarto e vejo John subindo a rua, puxando pela calçada, sobre um carrinho de carga, um objeto metálico, corroído. Na vez seguinte em que jantamos com eles, ouvimos que John procurava pela cidade peças descartadas de metal, que transformava em esculturas. Ele às vezes trabalhava nelas, mas em geral simplesmente as colocava sobre um pedestal. Sua preferência era por peças de automóveis. Via em alguns objetos descartados, encontrados pelas ruas de Quito, uma beleza intrínseca, que desejava preservar. Era um verdadeiro filho de Marcel Duchamp.

Do lado esquerdo do saguão da casa dos Hay ficava a porta para a biblioteca. Nada mais oposto a “El arrastre del Alfaro” do que o ambiente nesse cômodo, sereno e tranquilo, onde havia uma coleção de peças pré-colombianas. Quando partimos de Quito, Mary Lou nos deu de presente um pilão de pedra em forma de jaguar, da cultura Valdivia. Ela sabia, amiga generosa, ser essa a forma artística de que eu mais gostava da era pré-colombiana equatoriana.

Muitas vezes, de tarde, no fim de semana, ou depois ou antes do jantar, ali ficávamos os dois casais, sentados frente à lareira, admirando o fogo. Passear a Missy pelo parque na nossa rua significava aliás sentir, ao anoitecer, o perfume do eucalipto queimando nas lareiras do bairro. Na biblioteca dos Hay, conversávamos sobre a vida política equatoriana, arte, artistas e livros. Um dos autores prediletos de John era Paul Auster e, vinte anos mais tarde, isso se tornaria um dado importante na minha vida.

A morte, em fevereiro de 2021, de Vera Pedrosa, que tanto me entristeceu, deu-me vontade de falar com Mary Lou. Liguei para Quito. Conversamos sobre a amiga comum desaparecida e também sobre John, que morrera em 2018. Uma das coisas mais difíceis da existência nômade é aceitar que nunca mais voltaremos a ver amigos queridos. A partida de John me fizera lamentar que a amizade com ele e Mary Lou não pudesse ter sido alimentada com mais frequência nos dezessete anos anteriores. Eles não usavam redes sociais, nem mesmo whatsapp; e falar ao telefone, para mim, não é uma atividade agradável, para contrariedade da minha família. A vida assim vai se esgotando, enquanto deixamos, em outros cantos do mundo, pessoas de quem gostamos e que nunca mais veremos. De Vera Pedrosa, eu conseguira me despedir no Rio antes de vir para Kuala Lumpur, em janeiro de 2020.

Ao telefone com Mary Lou, comentei que, pouco meses antes, eu finalmente lera Paul Auster, em homenagem a John, e ela achou engraçado. Contou estar agora morando em um apartamento, já não na grande casa rosa de Los Comicios y Los Cabildos. Confirmou ter levado consigo o “Arrastre del Alfaro”. Depois de desligar, percebi que eu deixara de mencionar o poema de Vera Pedrosa, Pantogrifos, dedicado a ela em A Árvore aquela, clara homenagem a seus antepassados indígenas, em que “o avô, o pai” ficam

detidos ante carcaças de templos vazios
que o espírito havia há muito desertado

Pensei no presente dos Hay, o jaguar de pedra, antigo pilão que, milênios atrás, em uma cultura que desapareceu, em uma região do que hoje é o Equador, servia para esmagar plantas.

Esse viajante do tempo continua existindo, atualmente na Malásia, sem a sua função original; mas dá consolo estético a quem o vê, a começar por mim. Da mesma forma, a amizade por John Hay, Mary Lou Parra de Hay e Vera Pedrosa já não pode se manifestar da maneira anterior. Mas essa amizade é grande e verdadeira; não é um templo vazio, e nem o espírito a deserta.

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19 comentários sobre “O Vulcão

  1. Obrigado Ary por tua postagem. Só a pude ler no meu telefone e não no computador, o que inibe minha verve.Mas foi um imenso prazer viajar com você em tantos mundos. Tenho a impressão de que a peste está me afetando seriamente e que estou numa contagem regressiva para alguma és

    Enviado do meu iPhone

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  2. Olá!!
    Gosto muito! É com prazer que abro meu email e vejo sua postagem! Obrigado por partilhar esses escritos!!
    Leio, e ouço sua voz narrando!!
    OBRIGADO

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  3. Ary, foi uma agradável viagem ler sua crônica sobre o Vulcão. Aliás, vulcões me dão medo mas também me seduzem… e me fazem refletir sobre a força estrondosa da natureza – que a humanidade tenta inutilmente controlar.
    A simplicidade com que nos conta de sua vivência com o casal de vizinhos nos transporta para esses momentos frente à lareira. E o seu olhar sofisticado nos traz um pouco da história e da política equatoriana.
    Do Equador, pouco conheço… penso apenas nas cores fortes que sua cultura nos traz em quadros e fotografias e nos traços indígenas do seu povo.
    Sua reflexão sobre a vida nômade de um diplomata me fez pensar sobre a minha – esposa de um cantor de bossa nova por 37 anos – que me levou muito mais longe do que um dia, como menina curiosa que viajava o mundo nos livros, pude imaginar na minha Goiânia que chegaria…
    Tenho fascinação pelas palavras e viajei nas suas, Ary. Desejo muitas bençãos pra sua vida e que a magia da exótica cultura de Kuala Lumpur se revele em mais belas e interessantes histórias, para nosso deleite. Saúde e Paz!

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  4. Querido Ary,

    Nas últimas duas semanas estive extremamente ocupada, mas hoje, domingo, no final do dia tirei um tempinho para me atualizar nos seus posts.

    Primeiro li Joël Dicker e seu Enigma. Como sempre, muito bem escrito. Mas talvez por não ser tão erudita como você, as descrições dos livros não pretendem tanto a minha atenção.

    Porém, os outros dois posts: A tinta dos seres bons e o Vulcão, adorei.

    Aliás, esta séria das Cartas da Malásia depois você pode transformar num livro. Está excepcional.

    No “O Vulcão” você menciona o fato de não manter contato com amigos queridos, apesar de pensar neles muitas vezes.

    E que falar ao telefone para você é difícil. Ainda não consegui entender a razão disso. Um dia você me explica.

    Eu sempre mantenho contato com os amigos queridos, nem que seja lhes enviando um cartão no dia de seu aniversário.

    E agora, com o curso sobre o Sri Lanka, estou retomando contato com todos os amigos/conhecidos que deixei por lá há dez anos. Está sendo muito gratificante esta troca de informação. Todos se lembrando de mim perfeitamente.

    Você cita também a Vera Pedrosa.

    Acredita que quando fiz a minha grande viagem pela Índia e pelo Butão, em 2004, ela era a Embaixadora do Brasil em Nova Délhi.

    Mas nesta época, eu não a conhecia e, por isso, nem contato fiz.

    Porém, soube que era muito bem quista em Délhi, pois conheci o Embaixador de Moçambique numa festa e ele prontamente me convidou para almoçar em sua casa no final de semana.

    Se estiver com o meu livro aí, pode procurar na parte que descrevo a festa do Suman Damija e depois o almoço oferecido à mim e à Daniela no sábado ou domingo, não me lembro bem, na Casa do Embaixador.

    Pois bem, durante o almoço, o Embaixador de Moçambique comentou que deveria ter convidado a Vera Pedrosa, a Embaixadora do Brasil na Índia no momento, mas se esquecera.

    Foi por pouco que a conheci.

    Beijo carinhoso,

    Cláudia

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